A epidemia do diabetes, ao contrário de outros surtos, é
silenciosa. Pior do que isso, costuma ser aliada de doenças incapacitantes,
como a retinopatia diabética (RD), principal causa de perda de visão entre
pessoas com idade ativa. Sorrateira, a RD revela-se em estado avançado, quando
a cegueira é iminente. Há, entretanto, uma boa notícia: dá para controlar — e
até mesmo reverter — a complicação com uma substância que atua diretamente nos
olhos. Apresentada neste mês em um congresso médico na capital da Colômbia, a
estratégia, aliada à prevenção, pode evitar que muitos adultos percam a
capacidade de enxergar.
Na foto em destaque, a direita a visão de uma pessoa que
desenvolveu a doença. A esquerda, visão normal.
Quanto mais tempo os pacientes — especialmente os
negligentes com o tratamento — convivem com o diabetes, maiores a chances de
perder a visão. Depois de 20 anos, quase todos os com o tipo 1 da doença
metabólica e 60% dos acometidos pelo tipo 2 vão desenvolver a RD. Embora 80%
dos casos possam ser evitados com mudança na dieta e com a prática de
exercícios físicos, nem todo mundo evita o pior. A doença, inicialmente assintomática,
manifesta-se inicialmente pela visão borrada e com manchas negras.
Quando isso ocorre, é difícil reverter o problema. A
aflibercepte, substância ativa do Eylea, tem capacidade de recuperar essa perda
de visão, segundo a farmacêutica Bayer. A droga não é necessariamente uma
novidade. É usada para tratar outro problema de visão, a degeneração macular
relacionada à idade (DMRI), principal causa de cegueira na velhice. Agora,
começa a ser aplicada contra a RD em alguns países latinos, como Paraguai, Uruguai
e Colômbia, e nos Estados Unidos. A previsão é de que Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa) libere as prescrições ainda neste ano.
A aflibercepte é um antiangiogênico, ou seja, inibe a
replicação anormal de vasos sanguíneos no olho doente. Aschner Pablo Montoya,
professor de endocrinologia na Faculdade de Medicina da Universidade Javeriana,
na Colômbia, explica que esse crescimento irregular é consequência do
descontrole dos níveis anormais de açúcar no organismo. A glicose interfere na ação
do endotélio, camada interna dos vasos sanguíneos que está por trás da
resistência vascular e regula, por exemplo, o fluxo sanguíneo e as respostas às
inflamações.
“O açúcar enfraquece esse protetor e causa danos, ou
microangiopatias, nos capilares, os vasos sanguíneos bem pequenos que estão,
inclusive, nos olhos. Isso faz com que existam aí problemas de circulação e
hemorragias”, esclarece Montoya, também diretor científico da Associação
Colombiana de Diabetes. Os vasos sanguíneos enfraquecidos perdem a capacidade
de reter o líquido que circula dentro deles. Esse plasma, composto de sangue,
lipídios, entre outras substâncias, escoa para a retina, prejudicando a visão.
Indolor
É no centro da retina que fica a mácula, uma estrutura
fundamental para que uma pessoa possa enxergar. Sem ela, seria impossível focar
o olhar em um objeto, o que explica o fato de pacientes com RD perderem a
capacidade de centralizar a visão. Quando o líquido escapa pelos vasos
danificados, “polui” o cenário captado pelas estruturas da retina. A
aflibercepte, nesse sentido, regula a confusão do organismo, que passa a
produzir novos vasos sanguíneos, achando que os existentes estão danificados
demais para funcionar normalmente. O processo é chamado angiogênese e diminui
os vazamentos.
A dose recomendada de aflibercepte, aplicada em uma injeção
in loco, é de 2mg (0,05ml). O paciente, garantem oftalmologistas, não sente
dor. “Ele é anestesiado e sente apenas uma pressão. Após a aplicação, vê um
pouco embaçado porque o remédio está lá dentro. Entretanto, volta para casa no
mesmo dia”, explica Cecília Achcar, consultora médica da Bayer. O tratamento é
repetido mensalmente até que os resultados visuais e anatômicos sejam estáveis
durante o trimestre seguinte.
“Se não houver melhora ao longo das três primeiras injeções,
a continuação do tratamento não é recomendada. Se for continuado, os intervalos
das sessões podem ser gradualmente aumentados a fim de manter os resultados
visuais e anatômicos estáveis”, ressalva Achcar. Nos casos de interrupção da
terapia, o esquema de monitoramento deve ficar a critério do médico, e as
aplicações, retomadas, caso os resultados visuais e anatômicos se deteriorem.
Inovação
Antes do surgimento dos antioangiogênicos, a RD era tratada
com terapias a laser, que “queimavam” os vasos novos decorrentes da
complicação. A retina sã acabava sendo machucada com os feixes. Depois,
apareceu o tratamento fotodinâmico, ou o laser frio, usado com o auxílio de um
corante, a verteporfina, que marcava o vaso novo a ser queimado. Outros
medicamentos disponíveis conseguiam eliminar o vaso novo e frágil que causa a
RD, mas o tratamento apenas retardava a progressão da doença sem ajudar a
recuperar a visão dos pacientes.
Os antiangiogênicos, contudo, oferecem a possibilidade de
reverter o quadro se aplicados precocemente. No caso da aflibercepte, injeções
e monitoramento podem ser feitos em intervalos maiores, sendo que, no primeiro
ano, as aplicações ocorrem a cada dois meses depois de três iniciais. Após esse
período, pode-se estender o tratamento de acordo com critérios médicos baseados
na resposta visual do paciente. Alguns outros antiangiogênicos requerem
injeções e monitoramento mensais.
Para a oclusão da veia central da retina (OVCR), um tipo
comum de retinopatia diabética, por exemplo, o ganho de visão com a
aflibercepte é alcançado logo nos primeiros meses de injeção. A OVCR também é
uma desordem vascular retiniana muito comum entre os diabéticos. Estudos
clínicos de fase 3 com a substância para o tratamento do edema macular
diabético, outro tipo de RD, mostraram os benefícios logo no primeiro mês de
tratamento, mantendo esse ganho ao fim de um ano.
Um mal epidêmico
As complicações das doenças da retina provocadas pelo
diabetes, que é metabólico, crônico e grave, se alastram à medida que o mal
avança entre a população, especialmente a mais jovem. São cerca de 380 milhões
de vítimas da enfermidade. As amputações e a cegueira são alguns dos efeitos
colaterais que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), devem
dobrar até 2030. Elas acompanham o avanço das taxas de diabetes, que deverá
somar mais de 500 milhões de diagnósticos nos próximos 15 anos.
Isso significa que trabalhadores ainda jovens serão
aposentados por invalidez, gerando um escoamento de recursos considerável. Para
ser ter ideia do problema, em 2010, a perda de visão custou US$ 2,9 bilhões
globalmente. A projeção é que o valor salte para exorbitantes US$ 3,9 bilhões
dentro dos próximos cinco anos. Em 2012, Joanne Yau, pesquisadora da
Universidade de Melbourne, na Austrália, analisou 35 publicações científicas
que abrangiam 20 mil indivíduos para estimar a prevalência global de
retinopatia diabética. Os resultados indicaram que 34,6% da população global
sofre com o problema.
Pelo menos 60% das amputações das extremidades dos pés têm
relação com o diabetes. Dessas, 85% decorrem de pequenos machucados que
poderiam ser prevenidos e tratados, evitando a perda dos membros. A maioria dos
pacientes, entretanto, não percebe as lesões. Isso é uma consequência da
neuropatia diabética, a perda de sensibilidade dos membros inferiores que
afeta, inicialmente, os dedos e outras áreas dos pés.
Informações Correio
Braziliense